sexta-feira, 3 de abril de 2020

Ouvir, acreditar e acolher

Encontrei esse depoimento na página "Quebrando o Tabu" no Facebook. Quem escreveu foi Bel Saide. Resolvi postar porque somente depois de tantos anos comecei a compreender todas as consequências na minha saúde, não só mental, mas também física.

Mental, principalmente o borderline e fisicamente: cistos nos ovários, pólipo e mioma.

Destaquei as partes mais importantes. Hoje, toda minha família sabe quem foram as pessoas que abusaram sexualmente de mim (marido da amiga da minha mãe, ex-marido da minha irmã e meu cunhado, marido da minha outra irmã mais velha). 

Não me senti acolhida e amparada em nenhum momento, pelo contrário. Praticamente adicionaram culpa. Meu jeito de ser, meus problemas e como tudo isso afetou outros familiares.

Não demonstraram qualquer preocupação comigo, como me senti durante todos esses anos, todo o estrago em mim não foi considerado. Somente tudo que causei à família.

Sempre tentam medir problemas e sofrimentos com uma régua, comparando e minimizando de acordo com o grau. Talvez se tivesse sido estuprada e não só abusada eu teria motivo suficiente. 

Resumidamente, a preocupação é que eu faça alguma "besteira" (leia-se: suicídio),  mas não porque me amam ou sou importante, mas sim pelo estrago que posso causar à família.

Por isso amei esse depoimento, ele explica tudo. Como posso me curar se nunca encontrei apoio naqueles que amo e mais precisei?

 Destaquei os meus pontos principais:


“Eu tinha uns 8 anos e fui abusada sexualmente pelo zelador do prédio onde morava.

Hoje tenho 38 e uns dias atrás almoçando com meu pai ele me perguntou se eu me lembrava disso.

É claro que eu me lembro.

Se passaram 30 anos e eu me lembro perfeitamente. 

Me lembro do nome dele: Expedito. Me lembro do rosto dele. E do volume do pau dele que ele acariciava com minha pequena mão. E da mão dele dentro do meu short alisando minha vulva ainda sem nenhum pelo. 

Ele entrava no elevador atrás de mim quando eu estava indo ou voltando das brincadeiras no play

Como na maioria dos casos de abuso infantil não houve estupro. 

Não sei quantas vezes foram, mas foram algumas. Não sei por quanto tempo aconteceu mas não foi por muito.

Antes disso começar a acontecer eu gostava dele, achava ele legal e talvez por um sorriso ou algum gesto carinhoso infantil ele se sentiu nesse direito. E isso durou apenas o tempo até eu perceber que ele não estava mais sendo legal e que tinha alguma coisa errada naquilo.

Tomei coragem e contei pro meu irmão.

"Vou te contar um segredo mas você vai jurar que não vai contar pro papai e pra mamãe"

Meu irmão é mais novo que eu. Se eu tinha 8 ele tinha 5 ou 6. Numa maturidade e sensatez improváveis para a idade ele percebeu que não podia cumprir o que havia me prometido e contou para minha mãe, que obviamente contou pro meu pai.

Me lembro bem desse dia também. Quem conhece meu pai sabe que ele é um cara calmo. Eu nunca havia visto e nunca mais vi meu pai daquela forma. Ele ficou transtornado, fora de si. Me lembro do rosto dele vermelho de raiva. Nunca em toda a minha vida vi ou soube do meu pai agredir fisicamente alguém. Ele desceu pelas escadas sem nem esperar o elevador, foi ate o pedófilo que trabalhava tranquilamente na portaria e esmurrou a cara dele. Subiu pra garagem, pegou a tranca do carro e voltou talvez disposto a matá-lo. Felizmente não deu tempo, pois o cara já havia fugido e nem a polícia nunca mais o achou (digo felizmente pelo meu pai, pela minha família, pelo desdobramento muito pior que teria sido).

Nesses 30 anos cresci, me tornei mulher, fiz faculdade, fiz amigos, namorei, amei, fui amada, tomei pé na bunda, tive dor de cotovelo, transei, gozei, tive filho, pari de parto normal, trabalho, realizo meus sonhos, não tenho vida perfeita mas sou muito muito feliz. 

Contei essa historia poucas vezes porque poucas vezes me lembro dela. 

Nunca senti que isso tivesse me refletido grandes problemas.

Não me sinto traumatizada.

Sou ginecologista, feminista e já conversei com muitas mas MUITAS mulheres que viveram abusos semelhantes.

Percebo que a maioria delas carrega uma dor profunda, em maior ou menor grau. Muitas têm como sequela dificuldades em diversos aspectos da vida, muitas desenvolvem sérias doenças ginecológicas em consequência. Eu menstruo sem dor. Meu útero é saudável.

Eu estranhava isso.

Por quê?

Será que elas são mimizentas e eu sou fodona? Não não, não mesmo. Vi isso em várias mulheres tão ou mais fodas do que eu. 

Será então que talvez eu esteja me iludindo e isso sim me influencie de uma forma terrível que não percebo e eu tenha um trauma em algum lugar que eu nem sei?

Meu pai até chegou a achar que eu havia apagado isso para não sofrer...mas não, eu me lembro bem!! 

Mas não sofro...

Me preocupei.

Então, numa sessão recente de ThetaHealing contei o fato à terapeuta e ela com uma técnica na qual através dos sinais do corpo consulta as memórias inconscientes confirmou que realmente eu não carregava aquilo. 

E então brilhantemente ela matou a charada: eu não tinha traumas, eu não me sentia sequer culpada porque eu fui IMEDIATAMENTE COMPLETAMENTE ACOLHIDA.

Por TODOS a minha volta.

Por meu irmão que mesmo tão pequeno me ouviu, acreditou em mim e cuidou de mim, levando o assunto a quem deveria levar, impedindo assim que aquilo se prolongasse ou piorasse. 

Por meus pais que nem por um segundo sequer duvidaram de mim, nem sequer me perguntaram nada. Até pelos vizinhos do prédio que sabendo de tudo nunca me abordaram com questionamentos de nenhum tipo, assim como não insinuaram que meus pais não me protegeram daquilo. Como eles poderiam me proteger? Me trancando dentro de casa? Ora, mas eu estava em casa, estava no meu prédio! Onde estamos nós mulheres protegidas? 

Eu era a vítima, completamente e o tempo todo a vítima. Uma criança indo brincar. Ele era o abusador. Ele e somente ele o culpado. 

Senti vergonha, mas não passei por constrangimentos.

Fui acolhida por meu pai que reagiu à altura e rapidamente.

Meu pai me contou nesse almoço que foi à delegacia prestar queixa. Eu não sabia porque ele não me levou! Ele não me submeteu a corpo de delito.

Fui acolhida até mesmo pela delicadeza dele em só tocar nesse assunto comigo agora que já sou adulta e bem adulta, ele sequer sabia exatamente o que havia se passado com detalhes. NUNCA havia perguntado. 

Na ocasião só quem conversou comigo foi minha mãe, que certamente notou que eu estava bem e, se mantendo atenta, deixou passar. Dos dias posteriores só me lembro do meu pai com a mão engessada. 

Eu sentia pena dele ter se machucado, mas sentia um certo orgulho, aquele gesso me recordava que eu tinha quem me protegesse.

O fechamento em mim dessa história 30 anos após nessa sessão terapêutica me traz profunda gratidão à minha família e profunda reflexão também, por isso precisava muito relatar isso. 

Nenhuma mulher - nem mesmo as inocentes meninas - está livre de passar por isso em nenhum lugar. 

Mas o grau de dilaceração na alma dessa mulher possivelmente seja variável de acordo com o que se sucede nos mínimos momentos imediatamente após.

Reflitam também.

Gratidão por me ouvirem.”

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